Tem uma máquina de escrever dentro de você? A pergunta, disparada por uma criança pequena, durante uma de nossas rodas de conversas literárias na Educação Infantil, é, sem dúvida, recheada de curiosidade e imaginação.
Essas características, inerentes ao processo de aprendizagem e desenvolvimento, especialmente ao longo da primeira infância, são como molas propulsoras para quem escreve pelo desejo de dizer, de escrever, tanto quanto para quem escreve com a intenção de ser lido pelas crianças, inclusive por aquelas que habitam cada um de nós, adultos.
Nesse processo não se pode negligenciar a criança e o seu universo. Ao contrário, é preciso ir ao encontro dele: irreverência, independência, fantasia, realidade, humor, transmissão de valores, diversão, pensamento crítico, reflexivo, provocações, convicções, incertezas e espontaneidade sem, contudo, associar a literatura infantil ao uso didático e pedagógico que a escola, muitas vezes, pretende dar a ela. Longe disso, a literatura infantil precisa ser compreendida como arte – pelo texto e pelas ilustrações, concomitantemente.
Todo mundo, de certo modo, passa pela literatura infantil. Seja no âmbito familiar ou no espaço escolar. Os considerados grandes escritores e as grandes escritoras, de maneira particular, que foram atravessados por ela, possivelmente, foram impactados pela experiência leitora e alimentaram o seu investimento e o seu processo criativo na arte literária.
A experiência leitora, de forma geral, quanto mais precocemente iniciada, contribuirá para a formação humana e cultural. O contato sistemático com textos, com o livro, desde os primeiros anos de vida, de escolaridade, assim como o acesso a diversos gêneros literários, são condições importantes para a formação do leitor e do criador de textos. Esse contato pode e deve ser potencializado tanto em casa quanto na escola – e mesmo para além delas.
Assim, é fundamental que as crianças pequenas percebam a leitura como um processo contínuo que, além de fazer parte do seu próprio universo, crescerá com elas. O livro precisa se fazer presente na infância da mesma forma que os objetos do cotidiano infantil estão acessíveis. Aqui, o papel do adulto, da família ou da escola, como mediador desse processo, é preponderante. Ele é, diretamente, responsável pelo acesso da criança ao livro, à leitura e à literatura.
Há um acúmulo significativo de pesquisas que tratam da literatura infantil, especialmente dos contos de fadas e narrativas, relacionadas à aprendizagem e desenvolvimento da criança pequena. Ela contribui para que os pequenos identifiquem e reconheçam suas emoções e, por conseguinte, aprendam a lidar com elas reelaborando suas realidades. À família e aos professores e professoras, particularmente, cabe a tarefa de incluí-las na cultura letrada.
Na cultura atual, nem o conceito de infância e nem os objetos do cotidiano infantil são, de longe, semelhantes às crianças pequenas que nós, adultos, fomos um dia. Tampouco, os objetos diários, presentes neste tempo, se aproximam daqueles que tivemos e com os quais convivemos.
Com a presença da tecnologia da informação, com o advento da internet, as experiências leitoras se ampliaram, ganharam outros espaços e outros formatos. A presença de smartphones, tablets, ebooks, entre outros suportes, no universo infantil, é uma realidade.
E, de certo, é inútil resistir a ela. Assim, como a fotografia não matou a pintura, as novas ferramentas tecnológicas podem contribuir para a ressignificação das práticas de leitura, do acesso aos diferentes gêneros textuais, e especialmente, da literatura infantil. A lanterna do smartphone, por exemplo, pode ser fundamental na aventura que é, e pode ser, atravessar uma longa caverna escura, com morcegos e imensas teias de aranhas, feita de lençóis e cobertores jogados sobre as cadeiras ou mesmo sobre o sofá na sala de casa.
Curiosidade e imaginação, características do humano, infante ou adulto, são peças fundamentais que constituem a engrenagem da máquina de escrever. Logo, cada um de nós, sem nenhuma dúvida, tem uma dentro de si. Para ajustá-la, lubrificá-la e atualizá-la, é importante que, de tempos em tempos, sejamos capazes de assumir a Líla, do sânscrito, a brincadeira.
Por Lilian Menenguci
@lilianmenengucioficial
Professora e escritora.
Autora dos livros: “Os medos de Lili”, “Casa de Papel” e “A Criança Mágica”, voltados para o público infantil.